No segundo semestre de 2018, mais precisamente entre julho e agosto, um assunto tomou conta do Brasil: a descriminalização do aborto até a 12ª semana de gestação. O delicado tema que gera muitos conflitos e opiniões contrárias virou pauta do Supremo Tribunal Federal (STF) durante dois dias de audiência pública (3 e 6 de agosto) depois que o PSOL entrou com uma ação ao lado da assessoria técnica do Instituto de Biotecnia Anis.
Apesar de terem sido 96h muito intensas e de um caloroso debate, a maior autoridade do judiciário brasileiro decidiu encerrar as conversas sem sequer definir uma data para a ação ser votada.
Mas, se países que se mostram pioneiros em políticas públicas progressivas como Uruguai, Portugal e Espanha, três dos vários que legalizaram o aborto irrestritamente nos últimos anos, estão andando todos na mesma direção, por que o Brasil segue tratando o assunto como um tabu, inclusive cogitando a ideia de restringir ainda mais as regras que permitem que mulheres optem por passarem ou não pela gestação?
A resposta pode ser resumida em dois pilares que em partes fazem parte do mesmo universo: uma forte onda conservadora e uma população extremamente religiosa, que unidas tiram o assunto sobre o aborto das mãos da saúde pública e colocam a discussão, principalmente, sob a questão do cristianismo.
Atualmente, como é a lei do aborto no Brasil?
No momento, só é permitido fazer o aborto no Brasil em três situações bem específicas: quando a mulher é vítima de estupro, quando a gravidez apresenta risco para a vida da mulher ou quando o feto é anencéfalo, ou seja, que apresenta má formação do tubo neural, marcada pela falta parcial do encéfalo. Porém, é válido citar que a burocracia e a demora da justiça faz com que mesmo nestes três casos se torne difícil conseguir a permissão para um aborto legal.
Segundo o Ministério da Saúde, através de números obtidos pelo Sistema Único de Saúde (SUS), em 2017, ano do último levantamento divulgado, 1.636 abortos legais foram realizados, um número bem próximo ao que se viu desde 2010 – e a tendência é de que os dados de 2018 sigam a mesma lógica.
Porém, a realidade é muito diferente. De acordo com o Instituto de Biotecnia Anis, mais de 500 mil mulheres por ano no Brasil passam por procedimentos de aborto clandestino. “Eu hoje posso contar que fui tratada com dignidade e que um aborto não precisa ser traumático para a mulher. O que é traumático não é o procedimento, mas a ilegalidade”, disse Rebeca à Exame no ano passado.
Ela viajou para a Colômbia para abortar depois que viu seu pedido de aborto legal junto ao STF sequer ter sido analisado. No país vizinho, onde a lei é mais abrangente sobre o assunto, passou pelo aborto com segurança e viu a sua história ficar famosa no Brasil, a ponto de ter sido um dos principais motivos para a audiência pública de agosto de 2018.
Se Receba tivesse feito esse procedimento aqui no Brasil (partindo do pressuposto de que o seu pedido teria sido negado pelo STF), ela e os responsáveis pelo procedimento enfrentariam punições da justiça. Como haveria consentimento, todos os envolvidos se enquadrariam no Art. 124 da Constituição Federal (“Provocar aborto em si mesma ou consentir que outrem lhe provoque”) com reclusão de 1 a 3 anos.
Mas por que é tão difícil falar sobre aborto no Brasil?
São vários os estudos que tentam explicar os motivos pelos quais o Brasil encontra muita resistência em promover políticas progressistas, sejam elas em qualquer campo, enquanto países vizinhos ou que sempre serviram de influência mostram que estão caminhando em um sentido contrário. Ainda mais se levarmos em conta as nações que há anos adotaram a política de liberação do aborto e que mostram bons indicativos da experiência.
Uma das explicações que mais são aceitas por especialistas em políticas públicas e da área da saúde é o fato de que a população brasileira ainda é muito conservadora, o que freia bastante a discussão sobre o aborto em todas as esferas. Isso é tão verdade que 41% da população acredita que o procedimento deve ser proibido em todas as situações, mesmo em casos de estupro ou quando a mulher corre risco de vida.
Esse é apenas um dos dados que o IBGE divulgou após uma extensa pesquisa realizada acerca do tema no ano passado. Nela, percebe-se que a população de baixa renda e a de baixa escolaridade, que em muitos casos compreende uma amostragem parecida de pessoas, ainda tem muitas restrições quanto ao assunto, tendendo a ser aquela que não quer a liberação em nenhuma hipótese.
Coincidência ou não, é também a população mais pobre do Brasil (grande parte do total) que sofre mais influência da religiosidade na sua forma de pensar. E então entramos no segundo principal ponto que se apresenta como uma barreira difícil de ser transposta pelo aborto: a religião. Um dos países mais católicos do mundo e que tem uma parcela considerável de evangélicos ainda enxergam o aborto como um atentado à vida humana, considerando um grave pecado.
E esse é um ponto que muitos dos que defendem a legalização do aborto respeitam. Recentemente, ao canal do humorista Rafinha Bastos, Guilherme Boulos, candidato à presidência pelo PSOL em 2018 e alguém que sempre mostrou possível firme para a liberação, disse entender a questão da fé no debate e que ela não pode ser descartada.
E agora, como fica?
Por enquanto, o aborto no Brasil segue como é desde 1940. Enquanto o STF não marcou uma data para que os seus 11 ministros votem a favor ou contra a liberação menos irrestrita que a ação do PSOL os levou no ano passado, o governo de Jair Bolsonaro (PSL) tenta tornar as regras ainda mais rigorosas.
Damares Alves, ministra da Mulher, Família e Direitos Humanos, defende a ideia do que chama de “estatuto do nascituro”, um projeto que já está em tramitação no Congresso e que prevê que mulheres que engravidarem em decorrência de estupro recebam do estuprador uma pensão para manterem a gravidez (caso ele não seja reconhecido é o Estado que assume o papel de pagador).